Edgar e a beleza

Abri os olhos, numa rua escura e humida. Lembro de passar algum tempo admirada com as lamparinas a oleo, na calçada das casas.
Sempre estou de pés descalços nestes momentos, e mesmo no chao molhado nao me incomoda, foi ate curioso de ver, os meus pés tao brancos naquelas pedras do pavimento.
Tentei descobrir onde estava.
Uma tosse brusca e virulenta atras de mim, e notei que um homem entrava numa casa ali adiante... A dizer "muito obrigado, muito obrigado...." E cobrindo a boca com um lenço.
Cheguei perto e coloquei-me sobre a baixa grade das janelinhas do porao, na parede da frente do solar, de modo a ver pelas janelas suadas do primeiro andar.
Havia uma fresta por onde eu pude sentir o cheiro viciado e tao incomum dos charutos cubanos de qualidade.
Um homem fumava de pé junto à lareira, o outro entrava atarantado.
" é de maus modos usar as golas assim Edgar, quanto mais uma visita a esta hora"
" nao pude adiar, é um fenomeno sem igual, simplesmente uma delicia, e sabe que nao digo isto muito frequentemente...." -novo ataque de tosse o sacudiu.
" nao quero saber, homem, vá para casa. Lucius! Leve o senhor edgar para a porta."
" nao nao , nao há duvidas que nao me deve despachar assim, veja bem"
Ele se agarrara à poltrona com as maos como se fossem garras. Nao queria sair. O criado apareceu à porta.
"Faz mal Edgar... Faz mal. Sente-se ai, mas te aviso! Nao me posso mais com lamurias de amor, nem dar-lhe nada por elas. As senhoras ja querem mais do que isto. - ele fez um gesto e sentou-se, metendo o charuto no canto da boca e inclinando- se na grande poltrona de pele de pessego- Lucius... Traga-me gim."
"Devo trazer dois, senhor?
"certamente que nao, meu caro Lucius, o nobre Edgar aqui nao agrada-se desses vicios."
Lucius saiu e edgar remexeu-se na poltrona mordendo os labioos e corrigindo a gola freneticamente, tentando tossir baixinho. Me mexi tambem, os pés na grade e as maos no parapeito da janela. Queria poder ver melhor. Na rua, ninguem passava, e as casas tinham luz nas janelas superiores.
"Vamos com isto edgar. Nao tenho mais minha mulher, mas nao vou assim tao tarde para a cama."
"Senhor, quero que leia isto. - a tosse veio brusca, de mau aspecto, e ele tentou recompor-se - Por meu coraçao, por minhas pernas e meu bolso lhe rogo."
" vao lhe quebrar de novo edgar, nao vao? Nem mesmo quero saber quanto lhes deve, e pressinto um desastre com o que tens ai. Se for um sucesso, afoga-se em alcool e opio, e tua mulher me vem aqui lamuriar suas penurias."
"Mas o mundo precisa destes, lhe juro. Vendo-lhe minha alma, ao menos os leia!"
Vi ele tirar de dentro do casaco umas folhas amarrotadas. O velho bebericava o gim, que lucius trouxera. As maos do tal edgar tremiam. Prestei-lhe maior atençao. nao era muito alto...usava uma estranha gola de camisa com um colete amassado. O casaco tinha remendos feitos com uma linha grossa, branca. Lembrava-me alguem, naqueles modos freneticos e cabelos bagunçados.... Um par de olheiras de boemia.
"Muito bem, muito bem, mas agora se vá- disse o velho recolhendo as folhas das maos tremulas do homem a sua frente- Lucius, sera que pode....
"Eu conheço o caminho"
Fiquei parada ali, a olhar o homem na poltrona a ler as folhas e um estalido ao meu lado me acordou. O homenzinho pulara os degraus de dois em dois, e sorria, ate que me viu.
Ainda em cima da grade fiquei sem respirar olhando para ele.
"Posso lhe ver, sonhadora." Ele me disse me estendendo a mao e tossindo gravemente, cobrindo a boca com um lenço na outra mao.
Desci da grade para o chao e ele me olhava os pés, voltou a me sorrir e disse "e és bela, nao se esqueça. Me agradam essas belezas arrebatadoras, que rasgam a pele e nos arrancam pedaços! "
Eu sorri.
"Adeus, querida, ja nao há tempo, tenho aqui alguns niqueis no meu bolso, e para mim, a noite é longa."

Foi entao que acordei, e em um susto pensei "Poe."

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